37 GRAUS E MEIO

Conto finalista no "Concurso Contos da Quarentena" do site Brasil 247 em junho de 2020.

 

Acordei, trabalhei, trabalhei, trabalhei, comi, mijei, comi, trabalhei, mijei, joguei, fui dormir. Sonhei com unicórnios e prestidigitadores de salão. Acordei. Dormi. Sonhei com as pragas do Egito. Trabalhei mais um pouco, dormi. Sonhei com androides sonhando com ovelhas elétricas dançando o Lago dos Cisnes. Acordei. Trabalhei. Meu chefe me mandou um Whats. Parei de trabalhar para ver a foto de uma mulher nua que ele me enviara. Dei zoom. Ela tinha os seios bonitos e os dentes feios. Voltei ao trabalho, não demorou e senti meu estômago roncar, fui até a cozinha, peguei um saco de salgadinhos de queijo no armário, voltei pro computador, comi, digitei várias e várias linhas de código, cansei, me atirei na cama, liguei a televisão e coloquei na Netflix. Era noite. Fiquei uma eternidade procurando alguma coisa pra assistir. Me cansei. Desisti. Acabei dormindo. Dormi e sonhei com Ada Lovelace atuando num filme para adultos, depois levei três dias para descobrir que eu a confundira com Linda Lovelace. Rezei pra Lord Byron e perdi perdão por tamanha heresia. Acordei no meio da noite com os gemidos da minha vizinha tendo orgasmos múltiplos porque as paredes do meu apê eram finas demais. Me levantei e fui ao banheiro. Tentei mijar, mas não consegui por causa de uma ereção involuntária. Esperei. Enquanto esperava comecei a lembrar que dias atrás eu ainda estava no escritório, labuta desenfreada, quando fui avisado de que seria mandado pra home office. E é claro que achei ótimo, comemorei. Eu não gostava mesmo de gente, preferia era ficar na minha, quieto, mergulhado em algoritmos e lógica e fugindo ao máximo de conversas desnecessárias e socializações inúteis. Tanto que nem notei que o andar ficava cada vez mais vazio por causa dos colegas que, ou foram dispensados, ou morreram por causa do vírus. O pior era que, até aquele momento, eu nem sabia que havia uma pandemia. Mas havia e era por causa dela que eu não precisaria mais comparecer ao escritório. Lembrei, também, que aquele dia fora estranho, pois encerrado o expediente, deixei o trabalho, caminhei até o ponto de ônibus e notei que tudo estava mais parado que o normal. Tá certo que nunca fui de notar o movimento das coisas e das pessoas, geralmente eu andava de cabeça baixa e evitava ao máximo olhar nos olhos dos outros. Naquele dia, porém, ergui a cabeça e percebi as pessoas na rua quase todas usando máscaras. Percebi o mesmo dentro do ônibus. Mas confesso que, mesmo assim, não dei muita bola, pois lembrei de ter assistido o presidente falar na televisão de uma "gripezinha" e de ter pensado que não era nada. Mas era. Tanto era que, depois que me tranquei em casa, comecei a prestar atenção ao noticiário e percebi que as mortes aumentavam cada vez mais. O medo se espalhava e obrigava as pessoas a ficarem em casa, encolhidos, absortos, prisioneiros. Fábricas, aeroportos, comércios. Foi tudo fechado, com exceção de mercados e farmácias. Não me preocupei muito com isso também. Vasculhei a despensa e calculei que ainda tinha um bom estoque de Cheetos, Fandangos, e outros salgadinhos. E um pouco de comida congelada. E alguns litros de Coca na geladeira. Desde que eu não exagerasse na alimentação não havia motivo para pânico. E havia a esperança de tudo isso passar logo e a vida voltar ao normal.

 

Continua...

 

Para ler mais, compre o livro Contos da Quarentena – Finalistas do Concurso da TV 247 (Caixa)

 

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